São raros os rapés feitos sem a presença das cinzas. O conhecido rapé verde e sem tabaco Apurinã, dos Ayawiri, é uma das exceções. Ela é um elemento primordial e indispensável na composição dessa sagrada medicina.
No Rapé Sagrado, a cinza atua na parte da limpeza das vias
nasais e liberação de muco, erroneamente atribuída exclusivamente ao tabaco. A cinza é quem dá “aderência’’, é o ativador, e como dizem os txais, são as cinzas que dão a ‘’liga’’ ao rapé. É ela que facilita a entrada da nicotiana rústica nos nossos receptores, assim proporcionando a paz do rapé.
Espiritualmente, ela representa o lado feminino na composição do rapé, aquela que faz possível o contato com o mundo espiritual. De modo coloquial, podemos dizer que as cinzas são a base, o alicerce, elas ‘’seguram a barra para que o Tabaco possa fazer o seu
trabalho’’.
CASCA TRONCO OU GALHO?
Há anos atrás, o rapé era produzido apenas para o consumo
dos próprios indígenas habitantes da aldeia, o que não exigia muito esforço. Com o aumento da demanda mundial por esta medicina sagrada, os txais passaram a precisar de mais agilidade e rapidez no feitio das cinzas, e passaram a utilizar também galhos e partes do tronco.
Como bem sabemos, a maior parte da concentração dos benefícios medicinais de uma árvore está presente em suas cascas, mas não são todos os feitores que a utilizam exclusivamente em suas alquimias. Por isso, prezar pela seleção de feitores sérios e honestos é importante. O rapé ser produzido
com a cinza correta é o primeiro passo para um rapé de força boa.
TSUNU
A cinza de Tsunu (Platycyamus regnellii)), por exemplo, é uma cinza mais alcalina do que as demais, e por isso a absorção do receptor dopaminérgico é maior e por isso a força do tsunu é tão especial.
O Tsunu é considerado uma das 10 plantas medicinais brasileiras mais importantes, é empregada na medicina popular para tratar malária, impotência, má digestão, tontura, prisão de ventre e febres.
Os primeiros registros científicos do uso do Pau-Pereira ou Tsunu em tratamentos médicos surgiram em teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Revista Médica Fluminense (1861-1923).
Entre outras citações, aparece na primeira prescrição de banhos de ervas obtidas a partir do cozimento das cascas de Tsunu, do médico brasileiro Joaquim José da Silva (1791-1857) à escrava de sua irmã, que sofria de febres intermitentes. O relato menciona que a escrava foi curada no segundo dia de tratamento, resultado que estimulou o médico a continuar prescrevendo tais banhos para pacientes com febres.
O que se sabe de verdade, as cinzas dessa grande árvore tem algo de encanto, de especial. Sabe disso o povo Yawanawá, que a trata com tanta reverência.
O FEITIO DE CINZAS
Preparar as cinzas é uma arte sagrada que exige conhecimento da medicina. Não é qualquer feitor que consegue queimar uma cinza pura, alcalina, branquinha. Até chegar ao ponto de ser unida ao tabaco, as cinzas passam por extensos processos de purificação, desde queimadas, selecionadas e peneiradas.
Um bom feitor de rapé conhece as cinzas como ninguém, e comumente consegue diferenciar tipos provando o rapé, ou até mesmo pelo toque entre os dedos. Um bom feitor de cinzas sabe quais são as árvores mais adequadas para a queima, que em geral são aquelas de tronco firme. As árvores de tronco macio tendem a produzir uma cinza mais granulada e que estraga mais fácil. Caso o feitor escolha de forma errada a árvore para colher as cascas e fazer cinza para rapé, resulta em um rapé ruim, de pouca força e que entope facilmente as vias nasais.
Omar Gbiran Wahbe
Omar Gibran trabalha com as medicinas da floresta e é estudante dos ensinos das cultuas tradicionais.